Schleiermacher: O triplíce fundamento filosófico da teologia de Schleiermacher

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Schleiermacher: O triplíce fundamento filosófico da teologia de Schleiermacher

Por Marcos Granconato

INTRODUÇÃO:

O tema sobre o qual versa a presente monografia foi escolhido em virtude da necessidade presente nos dias modernos de uma elucidação do que é o liberalismo protestante, considerando especialmente suas raízes e os elementos que, desde os seus primórdios, o caracterizaram.

A profunda ignorância reinante no meio evangélico acerca desse tema põe em risco a orientação doutrinária adequada que é devida a inúmeras igrejas e cristãos em particular que, não conscientes dos contornos que caracterizam essa vertente protestante, deixam-se levar por ela, em prejuízo de sua responsabilidade como guardiões da verdade.

Daí a importância de se conhecer o pensamento de Friedrich Schleiermacher, o chamado “pai do liberalismo”. À luz de seus pressupostos filosóficos fundamentais, bem como dos reflexos desses mesmos pressupostos sobre sua teologia, pode-se vislumbrar as bases do liberalismo que, desenvolvendo-se desde os tempos do Iluminismo, passou a representar uma forte ameaça contra a ortodoxia até os nossos dias. Espera-se que, conhecendo essas bases, os crentes compreendam melhor o pensamento liberal em todos os seus desdobramentos e, assim, estejam preparados para oferecer uma resistência mais eficaz contra ele.

A pesquisa vai demonstrar que, construindo um edifício teológico sobre fundamentos filosóficos falsos, Schleiermacher produziu um corpo doutrinário que, em hipótese alguma, pode ser chamado de Cristianismo, ainda que faça uso de termos do vocabulário teológico ortodoxo.

Partindo, pois, de uma breve exposição do contexto em que viveu Friedrich Schleiermacher – apresentando, em seguida, seus pressupostos filosóficos (resultantes, inclusive, das influências que sofreu a partir do ambiente intelectual dos seus dias) – e, finalmente, demonstrando os reflexos desses fundamentos sobre a sua teologia, a monografia demonstra o abismo existente entre as sementes do pensamento liberal e a fé cristã histórica. Concluindo, o trabalho apresenta, entre outras coisas, considerações, uma reflexão sobre os perigos que acompanham as tentativas de maquiar o Evangelho no afã de torná-lo aceitável às mentes não iluminadas por Deus.

O método usado para a produção desta monografia foi a pesquisa bibliográfica de fontes primárias e secundárias.

1. SCHLEIERMACHER E SEU TEMPO
Friedrich Daniel Ernest Schleiermacher, o assim chamado pai do liberalismo protestante, nasceu na Alemanha, em 1768, filho de um capelão do exército pertencente à Igreja Reformada da Alemanha. Em 1796, foi ordenado em Berlim, onde atuou como pastor na Igreja da Trindade. Como professor de Teologia, ensinou em Halle, em 1804, e em Berlim (1810), na universidade que ajudou a fundar.

Assim, foi notável o impacto que a religião cristã exerceu sobre a vida do grande pensador, conforme ele próprio escreveu:

A religião foi o corpo maternal, em cuja sagrada obscuridade se alimentou minha vida juvenil e se preparou para o mundo que, todavia, constituía para ela uma realidade não decifrada; na religião tem respirado meu espírito, antes mesmo que ele houvesse encontrado seus objetos externos, a experiência e a ciência; ela me ajudou quando comecei a examinar a fé paterna e a purificar o coração dos desejos do passado; ela permaneceu em pé para mim quando Deus e a imortalidade se enfumaçaram ante olhos vacilantes; ela me conduziu à vida ativa; ela me tem ensinado a manter-me a mim mesmo como algo sagrado, com minhas virtudes e meus defeitos, em minha existência indivisa, e só mediante ela tenho realizado a aprendizagem da amizade e do amor.

Na citação supra pode-se detectar na vida de Schleiermacher a influência do pietismo que dá à devoção lugar de proeminência, inclusive sobre a doutrina. Por outro lado, deve-se destacar que o romantismo, com sua crença no panteísmo, bem como o agnosticismo, que enfatizava o prático mais do que o teórico, também exerceram grande influência sobre o teólogo alemão.

O ambiente filosófico a partir do qual Schleiermacher emergiu e no qual desenvolveu seu pensamento foi o do Iluminismo, aquele período abrangente dos séculos 17 e 18 marcado pela intensa desconfiança da tradição e das antigas fontes de autoridade e pela exaltação da razão com sua capacidade de análise.

Ao longo do período iluminista, a teologia sofreu ataques nas mais diversas áreas. Padrões refinados para o estudo da história foram desenvolvidos. Tais padrões, primando pela exatidão e objetividade, quando aplicados aos textos históricos da Bíblia, conduziam ao questionamento de sua credibilidade.

Por sua vez, a ciência, com sua inquestionável história de sucesso, foi considerada capaz de retratar a realidade com profunda exatidão, de maneira que, onde a Escritura Sagrada conflitava com ela (como na menção de episódios sobrenaturais, por exemplo), deveria ser terminantemente rejeitada pelo homem moderno.

O tempo em que viveu Schleiermacher também foi caracterizado pela crítica quanto à autenticidade de documentos até então tidos como fidedignos. A Bíblia, evidentemente, não escapou dessa análise rígida. Como conseqüência, a chamada “alta crítica” pôs em dúvida a autoria dos diversos livros da Bíblia e fixou a data de sua composição em anos bem mais recentes do que aqueles tradicionalmente aceitos.

O racionalismo foi outra marca do período iluminista. Os deístas foram os primeiros a defender a idéia de que toda a verdade, para ser aceita, deveria passar pelo crivo da razão. A verdade religiosa não deveria ser exceção. De fato, em sua obra, Immanuel Kant (1724-1804) enfatizou que a razão deve ser soberana na ciência, na ética, na estética e na religião. Assim, os cristãos deveriam eliminar as doutrinas que ofendem a razão, já que elas não podem, logicamente, corresponder à realidade.

Para a melhor visualização dos moldes dentro do qual se formou o pensamento de Schleiermacher, é necessário também compreender a noção de tolerância que marcou os seus dias. Com as descobertas, desde os dias de Colombo, de grandes culturas e religiões, desenvolveu-se a idéia de que nenhum modelo religioso deveria reivindicar a totalidade da verdade diante de outras crenças. Isso, logicamente, implicava a rejeição de qualquer dogmatismo e fazia surgir o ideal de uma religião unificada, composta pelo que há de melhor e mais razoável em todos os modelos.

O Iluminismo foi ainda caracterizado por uma antropologia otimista. A doutrina do pecado original foi totalmente desacreditada e uma expectativa alegre quanto ao futuro da humanidade tomou o lugar da visão sombria que, às vezes, a Bíblia apresenta acerca do coração humano e do fim dos seus caminhos.

É importante ainda mencionar a obra de Kant como componente da matriz dentro da qual se desenvolveu o pensamento teológico liberal de Friedrich Schleiermacher. Kant cria estar defendendo o Cristianismo ao ensinar em sua Crítica da razão pura (1781) que a ciência nada tem a dizer sobre a religião. Posteriormente, em sua Crítica da razão prática (1788), procurou fundamentar unicamente sobre a razão os conceitos de Deus, da liberdade e da imortalidade. Isso tudo deu à religião um caráter predominantemente ético, tornou sem sentido a apologética cristã tradicional e esvaziou a plausibilidade de uma religião sobrenatural.

Todo esse cenário, como será visto, deixou marcas sobre a obra de Schleiermacher e, por intermédio dele, trouxe implicações para a teologia cristã as quais são sentidas ainda em nossos dias.

2. OS CONCEITOS FILOSÓFICOS BÁSICOS DE SCHLEIERMACHER
Três são as bases sobre as quais o pensamento de Schleiermacher foi construído. O exame desses elementos fundamentais, evidentemente, lança luz sobre todo o seu pensamento teológico, além de revelar desdobramentos da própria mentalidade iluminista.

2.1 A RELIGIÃO COMO SENTIMENTO
Schleiermacher ensina haver no homem um sentimento que o liga a Deus. Trata-se de um senso interior que proclama a sua continuidade com o Espírito do universo. Esse sentimento, ou gefühl, não é uma simples emoção, mas sim o reflexo de que tudo no universo procede de uma só raiz e, nessa raiz, todas as coisas são essencialmente idênticas. O gefühl, segundo Olson, “é a consciência distintamente humana de algo infinito, além do próprio eu, da qual ele depende para tudo.”

Esse conceito básico é expresso de modo claro no discurso de Schleiermacher sobre a essência da religião:

Ela [a religião] não pretende, como a metafísica, explicar e determinar o Universo de acordo com sua natureza; ela não pretende aperfeiçoá-lo e consumá-lo, como a moral, a partir da força da liberdade e do arbítrio divino do homem. Sua essência não é pensamento nem ação, senão intuição e sentimento. Ela quer intuir o Universo, quer observá-lo piedosamente em suas próprias manifestações e ações, quer ser impressionada e plenificada, na passividade infantil, por seus influxos imediatos… A religião quer ver no homem, não menos que em todo outro ser particular e finito, o Infinito, seu relevo, sua manifestação… A religião desenvolve toda sua vida também na natureza, porém se trata da natureza infinita do conjunto, do Uno e Todo; o que no centro desta última vale para todo ser individual e, por conseguinte, também o homem, e em cujo âmbito todo o existente, e também o homem, pode desenvolver sua atividade e permanecer nesta eterna fermentação de formas e seres particulares, o que quer a religião intuir e sentir de forma particularizada com tranqüila submissão.

Das palavras de Schleiermacher acima citadas, deduz-se, primeiro, que, para o teólogo alemão, a sede da religião é o interior do homem. É no “eu”, no íntimo do ser humano, em suas intuições, que se encontram as evidências de uma realidade superior que abrange o próprio homem e que também o transcende. O valor da experiência aqui é notável, constituindo-se ela na base suprema da religião.

Ademais, o sentimento de que fala Schleiermacher encontra-se em cada indivíduo de modo necessário, já que resulta de sua relação também necessária com o “Infinito”, o “Uno e Todo” de que é uma manifestação individual. Daí se deduz que não existem ateus de fato. Ainda que algumas pessoas neguem de forma proposicional a existência da divindade, elas mesmas intuem a existência do “Todo”, do objeto da religião, chamado por muitos de Deus.

2.2 A DEPENDÊNCIA TOTAL DE DEUS
A resposta mais elevada dada pelo homem ao sentimento referente a Deus é o senso de total dependência dele . É nessa dependência que se traduz de modo pleno o sentimento relativo ao Espírito do universo. Tal dependência é o próprio sentimento aqui tratado, manifesto de forma amadurecida quando o ser humano tem plena consciência dele.

Nas palavras de Norman Geisler, esse sentimento de dependência pode ser descrito como “a sensação de ser criatura, a consciência de ser dependente do Todo, ou a sensação de contingência existencial”.

Para Schleiermacher, a doutrina é apenas uma das maneiras pelas quais se expressa o sentimento religioso de dependência. Daí decorre que a doutrina não é essencial e nem mesmo necessária, uma vez que há outras formas em que a dependência se faz manifesta. O símbolo, por exemplo, pode ser uma delas. Aqui se vê a marca do agnosticismo em seu pensamento, com o seu notável desprezo pelo que é teórico.

Sendo a religião um sentimento expresso na “consciência de ser dependente do Todo”, sua comunicação se realiza de modo mais eficaz pelo exemplo e não por meio do ensino formal. Além disso, considerando que o sentimento religioso, como qualquer outro sentimento, apresenta variadas formas de manifestação, é natural que variadas sejam também as expressões religiosas (teísmo, panteísmo e seus respectivos desdobramentos), todas elas válidas, à medida que os sentimentos de dependência que as originaram, partindo de diferentes personalidades, também são válidos. Portanto, a tolerância em relação às diversas crenças, uma das marcas do Iluminismo, também pode ser vista no pensamento de Schleiermacher.

Nesse sentido, escreve o pai do liberalismo:

Por que tenho admitido que a religião não pode manifestar-se plenamente senão em um número infinito de formas totalmente determinadas? Só pelas razões que foram expostas quando falei da essência da religião. A saber, porque cada intuição do Infinito tem plena consistência própria, não depende de nenhuma outra e tão pouco implica necessariamente nenhuma outra; porque seu número é infinito e nelas mesmas não se dá nenhuma razão pela qual tenham de referir-se uma à outra deste modo e não de outro; todavia, cada uma aparece de uma forma completamente distinta… A única possibilidade de que a totalidade da religião possa existir é que todos esses diferentes pontos de vista de cada intuição, que possam surgir desta maneira, se dêem realmente; e isto só é possível em uma infinitude de formas diferentes…

Eis aí a mais pura manifestação da religião não dogmática, bem como os germens da pluralização da verdade religiosa com a qual o Cristianismo, com seu discurso exclusivista, teria de lidar não só ao tempo do Iluminismo, mas, a partir de então, ao longo de toda a sua história.

2.3 OS DISTINTOS NÍVEIS DE CONSCIÊNCIA
O sentimento de dependência do Todo de que fala Schleiermacher pode manifestar-se em diferentes graus em cada indivíduo, havendo, inclusive, aqueles em que o grau de dependência de Deus é baixíssimo.

É essa variação nos níveis de consciência de cada um que, no pensamento do notável teólogo alemão, define o pecado. Segundo Stanley Gundry, para Schleiermacher, “o pecado é essencialmente a consciência sensual, o que quer dizer qualquer tipo de preocupação total com este mundo, excluindo-se a total dependência do homem diante de Deus…”.

Evidentemente, essa reconstrução da hamartiologia redunda numa antropologia mais otimista do que aquela que a Bíblia, com a doutrina do pecado original, ensina. Além disso, essa visão de pecado produz, como se verá, reflexos tanto na cristologia como na soteriologia. De antemão, percebe-se que, sendo o pecado a prisão da consciência humana ao que é finito, a recusa de identificação com o Universo, vivendo nele ou confundindo-se com ele, reconhecendo afinal ser dele dependente, a salvação consiste numa transformação nessa consciência, livrando-a do individualismo. Por outro lado, o papel de Cristo na redenção do homem consiste em criar essa mudança de consciência por meio da pregação da igreja.

Norman Geisler expõe com clareza o conceito de salvação de Friedrich Schleiermacher:

O conceito de salvação de Schleiermacher não era ortodoxo. Ele acreditava que a salvação era a impressão deixada por Jesus. Essa consciência esclarecida de Deus transformava a comunidade cristã quando a consciência empobrecida de Deus era substituída pela de Jesus.

Da breve citação acima se depreende que Schleiermacher, além de atribuir significados novos para termos próprios do vocabulário cristão ortodoxo, também sustentou um conceito reducionista de Jesus, apresentando-o como um homem munido de aguda consciência divina, profundamente dependente de Deus, mas não divino, no sentido que a igreja cristã o apresenta em seus credos. De fato, a reformulação do conceito de pecado feita por Schleiermacher, identificando-o a partir de distintos graus de consciência, constituiu-se numa ameaça que se levantou contra o próprio centro da fé cristã histórica.

3. OS REFLEXOS DA FILOSOFIA DE SCHLEIERMACHER SOBRE SUA TEOLOGIA: ANÁLISE E AVALIAÇÃO
No item anterior, ficou claro em vários momentos o modo como os pressupostos filosóficos de Schleiermacher causaram impacto sobre sua teologia. Porém, a extensão desse impacto merece consideração especial, dadas a sua amplitude bem como a forma como ainda se insinua com marcante nitidez no cenário teológico moderno.

Primeiro, sua filosofia marcantemente influenciada pelo romantismo conduz fatalmente ao panteísmo. De fato, é muito difícil não associar sua teologia com uma forma, pelo menos experimental, de panteísmo. Observe-se, por exemplo, a linguagem que usa em seu segundo discurso a seus antagonistas eruditos, intitulado Sobre a essência da religião:

Intentai, pois, renunciar a vossa vida por amor ao Universo. Aspirai por destruir já aqui vossa individualidade e a viver no Uno e Todo, aspirai por ser mais que vós mesmos, para perderdes pouco quando vos perderes a vós mesmos; e quando vos confundires com o Universo, na medida em que o encontreis aqui entre vós, e surja em vós um desejo maior e mais sagrado, então haveremos de falar ulteriormente sobre as esperanças que a morte nos proporciona e sobre a infinitude em direção à qual infalivelmente nos elevamos mediante ela.

Das palavras acima pode-se auferir que Schleiermacher ensinava que Deus (ou o Todo), em algum sentido, confunde-se com sua criatura. Aliás, o apelo que elas encerram demonstram que, no âmbito da piedade, tudo se resume no fortalecimento da consciência do Todo e, especialmente, na descoberta do vínculo com o infinito já existente dentro de cada um. É, pois, precisamente nessa esfera experimental que o teólogo alemão aparece mais fortemente de mãos dadas com o panteísmo. Essa ligação, é obvio, afasta-o da fé cristã numa área crucial, uma vez que nega conceitos básicos acerca da natureza de Deus e da forma como o homem deve se relacionar com ele. Removidas as bases cristãs elementares da teologia própria, torna-se impossível construir um edifício religioso que mereça o título de Cristianismo.

A menção feita acima da “esfera experimental” conduz ao ponto da teologia de Schleiermacher mais conflitante com o Cristianismo histórico. De fato, em seu modelo teológico, decorrente de seus pressupostos filosóficos, a experiência reina suprema, o que não é de se estranhar, dada a forte influência que sofreu por parte do pietismo.

Para o pai do liberalismo, portanto, o centro do Cristianismo, o objeto da fé e a essência de qualquer modelo religioso era predominantemente aquilo que o homem experimenta. O que Deus diz ou faz, conforme ensina a ortodoxia cristã, deve dar lugar a uma nova forma de compreensão da verdade religiosa, forma essa centrada na experiência, livre dos credos ou dogmas tradicionais. Estes perdem sua importância à medida que não combinam com a experiência humana da consciência de Deus. Mais uma vez, vale ressaltar que a sede desse Cristianismo reconstruído não é o intelecto ou a vontade, mas o sentimento de estar unido ao Universo e, como parte dele, dele também depender.

O grande espaço dado à experiência na teologia de Schleiermacher, não permitia que houvesse lugar para a ortodoxia dogmática. O corpo doutrinário cristão é, nesse modelo, totalmente excluído, o que, certamente, foi visto com bons olhos pelos adeptos do Iluminismo reinante em seu tempo, os quais buscavam uma religiosidade que se harmonizasse plenamente com os ditames da razão.

Sendo a experiência a norma pela qual tudo em religião deveria ser julgado, para Schleiermacher até as Escrituras tinham que se submeter ao seu escrutínio. É nesse ponto que sua bibliologia se define. Para ele, a Bíblia não deveria mais ocupar lugar de autoridade suprema. Acima dela devia ser colocada a experiência religiosa. Aliás, o modo como Schleiermacher se refere à Escritura e à religião derivada totalmente dela é severo. Ele escreve aos seus opositores eruditos:

Vós tendes razão em depreciar aos miseráveis repetidores, que derivam de outro toda a sua religião ou a vinculam a uma escritura morta, juram sobre ela e realizam suas demonstrações a partir dela. Toda escritura sagrada não é mais que um mausoléu, um monumento da religião que atesta que esteve presente ali um grande espírito, que já não está mais; pois, se, todavia, vivera a atuara, como atribuiria um valor tão alto à letra morta que só pode constituir uma débil estampa do mesmo? Não tem religião quem crê em uma escritura sagrada, senão o que não necessita de nenhuma, pois até ele mesmo seria capaz de fazer uma.

Evidentemente, esse desprezo pela Bíblia teve um impacto devastador sobre a teologia do pensador alemão e, conforme realça Augustus Nicodemus Lopes, redundou numa revisão completa das doutrinas cristãs tradicionais, trazendo como resultado um novo tipo de religião, não o Cristianismo.

Nos aspectos até aqui expostos, torna-se notável a presença do racionalismo na teologia de Schleiermacher. Rejeitar as doutrinas cristãs que eram inaceitáveis para as mentes esclarecidas da época foi uma marca distintiva da cosmovisão que, tendo Kant como seu principal expoente, exaltava a razão, tornando inaceitável uma religião baseada na revelação sobrenatural.

Que a exaltação da razão ocupou lugar de destaque no pensamento do pai do liberalismo é ainda notável por meio da análise de sua concepção relativa a milagres. Para ele, não há nada que seja absolutamente sobrenatural, sendo tudo (inclusive os fenômenos estudados pela ciência) um conjunto de manifestações da causa suprema, o que torna censurável a crença em intervenções divinas especiais.

Reduzido a uma intuição mística e privado de seu conteúdo doutrinário, o Cristianismo como tal desaparece. Isso porque, como é sabido o Cristianismo é (inclusive) um sistema doutrinário, sendo a aceitação ou rejeição desse sistema a base para definir quem é cristão e quem é herege ou pagão. Assim, não há como separar a religião cristã do sistema de crenças e dogmas construído a partir das Escrituras Sagradas, sob pena de desfigurá-la completamente. Ora, foi exatamente isso que a obra de Schleiermacher tentou fazer.

Merecem também análise o conceito de pecado formulado por Schleiermacher bem como seus reflexos sobre a cristologia e a soteriologia. Já foi destacado no item anterior os contornos desse conceito e a extensão de seus reflexos. Deve-se agora demonstrar que, nesse ponto, Schleiermacher atinge o Cristianismo no próprio coração. Isso porque, para ele, como já dito, pecado é crer na própria autonomia em relação ao Todo (Deus) e a salvação consiste em livrar-se dessa falsa crença.

Ora, a salvação proposta por Schleiermacher não impõe a necessidade de um Deus-homem. Por isso, em seu modelo teológico, não há espaço para a doutrina tradicional das duas naturezas de Jesus Cristo. Este é apresentado como um ser humano comum, distinguindo-se apenas por seu senso constante e agudo de dependência de Deus, presente nele desde a mais tenra infância. Sua função de salvador consistiu de transmitir essa intuição ao mundo por intermédio da igreja que fundou.

Assim, Schleiermacher nega tanto a divindade de Cristo como a sua morte expiatória, temas esses que são centrais no Cristianismo. Além disso, no âmbito soteriológico, todo o conjunto de suas idéias, desde seu conceito de Deus até sua definição de salvação, conduzem ao universalismo, isto é, à crença na salvação de todos que, segundo ensina, mediante a morte, caminharão rumo à infinitude, na qual perderão a individualidade, confundindo-se com o Universo.

Vê-se que, no afã de criar um modelo aceitável à mentalidade iluminista, o teólogo alemão pagou um preço muito alto: reduziu Cristo a um simples modelo a ser seguido, transformou seu sacrifício numa forma dramática de chamar a atenção para o seu exemplo e definiu a salvação final como o dissolver do eu no Todo universal. Mais uma vez conclui-se que dificilmente a teologia de Friedrich Schleiermacher pode ser chamada de cristã.

Reflexos dos conceitos filosóficos básicos de Schleiermacher são vistos também em sua eclesiologia. Sendo o cerne da religião a consciência particular de absoluta dependência de Deus, o propósito da igreja se resume em promover o crescimento desse sentimento. Deve ela, assim, preservar as doutrinas que, desde a sua fundação, contribuem para o aprimoramento das afeições religiosas, como, por exemplo, a doutrina de Jesus de Nazaré como modelo de profunda e constante dependência do Todo.

Ademais, a igreja deve prover o contexto dentro do qual a vida de dependência, baseada na consciência de Deus, aconteça no âmbito de uma comunidade historicamente ligada a Jesus de Nazaré. Nela todos estão unidos entre si, e esse todo, em que cada parte é necessária, está relacionado ao redentor. Os sacramentos, inclusive, são meios pelos quais a comunidade mantém comunhão com Cristo e também meios pelos quais a atuação de Cristo tem continuidade na igreja, nutrindo seu sentimento de dependência.

Não se pode negar que a eclesiologia de Schleiermacher desemboca numa responsabilidade ética e social elevada. Porém, a experiência tem demonstrado que nem sempre o procedimento correto se fundamenta num pensamento também correto. Paulo fala de uma justiça e de uma santidade que são distintas por procederem da verdade (Ef 4.24) . Por outro lado, se a eclesiologia de Schleiermacher busca uma unidade ideal, nela o propósito fundamental da igreja desaparece, a saber, o alvo de proclamar a redenção pelo sangue do Deus-homem, nos termos em que a Escritura apresenta essa mensagem. Ora, carente desse objetivo, a igreja que Schleiermacher apresenta como ideal não é propriamente a igreja cristã, seja em sua composição, seja em suas realizações.

CONCLUSÃO:
Os biógrafos de Friedrich Schleiermacher dizem que, já nos tempos de seminário, ele perdeu sua fé na divindade de Cristo e na expiação pelo sangue. A partir de então, influenciado por Kant, passou a desenvolver sua forma peculiar de entendimento da fé cristã.

Daí se deduz que a origem de qualquer pensamento que se afasta do modelo exposto com clareza na Escritura é a incredulidade. O sustentáculo da ortodoxia não é o dogma ou o credo, mas a conversão. A árvore má não pode produzir frutos bons. Por isso, antes de conhecer a teologia defendida por alguém, é salutar conhecer primeiro o próprio expoente, com o propósito de verificar a realidade de seu novo nascimento, já que os conceitos teológicos verdadeiros se constituem não em obra de persuasão humana, mas em evidências da atuação sobrenatural de Deus no indivíduo (Mt 16.17) . Assim, sem dúvida por desconhecer a fé salvadora, Schleiermacher produziu um sistema teológico distante daquele presente na Escritura.

O estudo da vida e obra de Schleiermacher, porém, não ensina só a necessidade do novo nascimento para que surja o bom teólogo. De tudo que foi visto nesta monografia, exsurge de modo evidente o perigo que subjaz a tentação de tornar o Evangelho aceitável a todo custo para o mundo que vê a sabedoria de Deus como loucura (1Co 2.14) . Eis uma fonte de erros doutrinários na qual bebem inclusive os verdadeiros ministros do Evangelho.

O “pai do liberalismo” estava bem intencionado ao tentar apresentar um modelo teológico que refreasse a animosidade dos intelectuais dos seus dias contra a igreja cristã. Assim, adotou elementos do pensamento reinante, especialmente o Racionalismo e, montando uma lente filosófica absolutamente não-cristã, usou-a para fazer uma nova leitura da religião exposta no Novo Testamento. O resultado, conforme vimos, foi um Cristianismo tão desfigurado que dificilmente é possível divisar nele qualquer traço do modelo estabelecido por Deus por meio dos apóstolos.

Para a felicidade dos inimigos da fé de seu tempo, Schleiermacher, recusando-se partir da revelação especial e estabelecendo como ponto inicial e referencial o próprio homem com suas intuições e experiências, criou um conceito nitidamente panteísta de Deus, destruiu a singularidade da verdadeira religião, menosprezou o valor do dogma, reduziu o pecado a uma simples indisposição mental, transformou Cristo num mero modelo a ser seguido, esvaziou a cruz de seu valor expiatório, conceituou a salvação como um simples aprofundamento da consciência de depender do Todo que alguns chamam “Deus” e fez da igreja pouco mais do que a promotora dessa mesma consciência.

Toda essa terrível devastação mostra que, para o Cristianismo, a grandeza e distinção estão em manter-se separado do mundo, pois o amor dos perdidos, ao que se vê, só pode ser obtido quando se sacrifica a verdade.

Conclui-se, portanto, que o modelo exposto por Friedrich Schleiermacher não pode ser esposado por nenhum indivíduo que se considere cristão. Conclui-se ainda que o liberalismo protestante, que teve em Schleiermacher o seu fundador, não é opção aceitável para aqueles que pretendem preservar a verdade exposta nas páginas da Escritura, impondo-se a necessidade de desencorajar e mesmo refrear seu ensino em escolas teológicas e em igrejas, sob pena de se perderem os elementos distintivos da igreja de Deus e da genuína fé.

REFERÊNCIAS
GEISLER, Norman. Schleiermacher, Friedrich. In: Enciclopédia de apologética: respostas aos críticos da fé cristã. São Paulo: Vida, 2002.

GONZALEZ. Justo L. Uma história do pensamento cristão. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. 3 v.

GUNDRY, Stanley. Teologia contemporânea. São Paulo: Mundo Cristão, 1983.

LOPES, Augustus Nicodemus. A Bíblia e seus intérpretes. São Paulo: Cultura Cristã, 2004.

OLSON, Roger. História da teologia cristã: 2.000 anos de tradições e reformas. São Paulo: Vida, 2001.

SCHLEIERMACHER, Friedrich D. F. Sobre a religião. Discursos a seus menosprezadores eruditos. São Paulo: Novo Século, 2000.