Introdução
A Bíblia é um livro singular. Dentre todos os livros jamais produzidos na história da literatura humana nenhum outro foi tão traduzido, publicado, comprado e lido. Acima de todas essas peculiaridades, uma me chama a atenção. Em ambas as partes que a compõem, o Antigo Testamento e o Novo Testamento, a Bíblia começou a ser traduzida antes de estar formalmente reconhecida como um único livro.
Quando Esdras e seus companheiros levitas se dispuseram a educar o povo de Judá quanto aos aspectos essenciais da lei mosaica (Neemias 8), foi necessário traduzir os textos sagrados do hebraico para o aramaico, já que a população que retornara a Jerusalém cerca de 90 anos antes já não entendia plenamente a língua em que os livros tinham sido escritos (uma diferença próxima daquela que existe entre o português e o espanhol).
Assim é que o Cânon do Antigo Testamento ainda não estava fechado (os últimos livros ainda estavam por escrever), e já havia esforços para tornar as Escrituras mais compreensíveis ao seu público alvo.
Pouco tempo (cerca de 150 anos) depois de fechado o cânon, a formação de uma grande e cosmopolita colônia judaica em Alexandria levou os governantes do Egito a solicitarem para a grande biblioteca que ali se formava uma tradução das Escrituras hebraicas. Embora a tradição preservada na Carta de Aristeas aponte para uma tradução milagrosamente realizada em 72 dias por setenta e dois anciãos israelitas, a versão grega do Antigo Testamento foi produzida gradativamente, visando atender, ao mesmo tempo, a sede acadêmica de um monarca helenista e a demanda de uma comunidade para quem até mesmo o aramaico se tornara, na prática, incompreensível.
Ao tempo do Novo Testamento, o mesmo fenômeno aconteceu. Já escritos todos os livros, mas ainda não formalmente reconhecidos como uma biblioteca autorizada por Deus para uso da Igreja, porções significativas já estavam sendo traduzidas para diversas línguas do mundo mediterrâneo. Antes que a primeira lista canônica completa fosse divulgada, o Novo Testamento já tinha livros traduzidos para o latim, o siríaco e o copta. Nos dois séculos seguintes, dezenas de outras línguas e culturas foram enriquecidas com versões parciais ou totais do Novo Testamento. No século V uma nova versão latina, a Vulgata, surgiu para substituir a Ítala, que já tinha três séculos de existência no mundo romano.[1]
A Vulgata dominou o cristianismo ocidental por quase onze séculos. Tristemente, durante esse tempo, passou de um instrumento de libertação a uma ferramenta de escravidão espiritual e intelectual que o romanismo impôs à Europa e exportou aos demais continentes com o advento das grandes navegações e das conquistas.
Nos 150 anos que precederam a Reforma protestante os focos de anseio espiritual surgiram aqui e ali no continente europeu. Notáveis foram John Wycliffe, que lutou para dar ao povo inglês as Escrituras em sua língua pátria e morreu banido de suas lides acadêmicas e teológicas em Oxford. Seus seguidores, conhecidos como lolardos, continuaram sua tarefa de divulgar e ensinar a Bíblia no idioma popular.
A Reforma e o decorrente despertar do nacionalismo no século XVI trouxeram uma sede pela Palavra de Deus no vernáculo, e os reformadores não decepcionaram os que os seguiam. Versões vernaculares foram surgindo em inglês (William Tyndale), alemão (Martin Luther), francês (Pierre Olivetan), holandês (Nicolaas van Winghe, católico), italiano (Giovani Diodati), espanhol (Cassiodoro de Reyna) ao longo do século XVI e nos primeiros anos do século XVII. Quando este terminava, surgiu a primeira Bíblia completa em português, fruto dos labores do honrado João Ferreira de Almeida.
A tarefa continuou sem trégua. Milhares de idiomas ainda precisavam ser agraciados com a dádiva das Escrituras. Tradutores anônimos labutavam em vários continentes quando William Carey, o pai das missões modernas, iniciou sua gigantesca tarefa de levar a Palavra de Deus às etnias do subcontinente indiano. Ao morrer, havia traduzido as Escrituras em sua totalidade ou em partes para dezenas de idiomas e dialetos. Sua visão frutificou em um vasto número de Sociedades Bíblicas espalhadas por três continentes que tomaram sobre si a tarefa de traduzir e distribuir as Escrituras por todo o planeta. A tarefa continua, não apenas porque ainda há línguas que nada possuem da Palavra de Deus, mas porque aquelas que já a possuíam passam por constantes modificações, léxicas, sintáticas e semânticas, exigindo que hoje seja satisfeito o mesmo anseio presente na Praça das Águas em Jerusalém, 430 anos antes de Cristo — ouvir e compreender claramente a santa Palavra de Deus.
Este breve histórico serve como introdução para uma tarefa apologética em favor de uma versão recente das Escrituras em nossa língua. A década de 90 viu surgir, desenvolver-se e fruir um projeto de dar ao povo de fala portuguesa uma versão da Bíblia que combinasse fidelidade aos originais, atualidade de vocabulário e gramática sem vulgaridade ou ideologismos, e facilidade de leitura. A história desse projeto foi brevemente narrada pelo Rev. Odayr Olivetti, um dos participantes do projeto, no artigo “Nova Versão Internacional da Bíblia em Português: Escorço Informativo”[2]. Ao final, ele indica a expectativa de todos os participantes do projeto “de que a Nova Versão Internacional será um instrumento do Espírito de Deus para comunicar bênçãos a muitos.”
Hoje, quase sete anos depois de lançado o Novo Testamento da NVI, o Antigo Testamento está sendo preparado (em fase de composição) para lançamento em breve. Igrejas, escolas e indivíduos vêm usando com proveito essa nova versão. Num mercado longe de ser saturado, a NVI se estabeleceu como uma opção significativa para quem deseja ouvir a voz de Deus na sua leitura pessoal das Escrituras.
Apesar desse sucesso, a NVI não ficou sem os seus críticos. Recentemente, dois ataques bastante sérios foram divulgados, visando o Novo Testamento publicado pela Sociedade Bíblica Internacional. Um deles foi publicado no Jornal de Apoio 63, pp. 6-7, num artigo de autoria do Prof. Donald L. Leaf. O segundo surgiu na Internet, e traz como divulgador o Pr. Emídio Viana. Em ambos os casos, fui alertado para a existência desses ataques por amigos evangélicos que utilizam a NVI-NT e ficaram preocupados com o tom e a natureza das acusações. Em benefício desses irmãos preparei respostas aos dois documentos; pelo caráter mais amplo do segundo ataque, restrinjo a ele as respostas aqui oferecidas. A natureza global do segundo documento, amplamente circulado pela Internet, demandava algo mais que uma resposta particular. A pedidos da Sociedade Bíblica Internacional compartilho com o povo evangélico brasileiro estas observações com o propósito de tornar esse debate mais amplo, mais sereno, e mais proveitoso para a Igreja de fala portuguesa, para que possa ler com expectativa e confiança a Palavra de Deus.
“Expondo Os Erros Da NVI”: Uma Resposta
Os dois artigos que mencionei acima são bastante agressivos e denunciam a NVI como um instrumento de Satanás para perverter a Igreja e destruir a Bíblia.
Há um lado negativo e um lado positivo em tais documentos. Do lado negativo, seus autores acusam abertamente os tradutores da NVI de negarem a inerrância das Escrituras, de buscarem dividir, polarizar e causar contenda entre o povo de Deus, de vilipendiarem a Palavra de Deus e mutilarem o texto sagrado.
São acusações graves que merecem ser respondidas com um pouco mais de critério e conhecimento de causa do que foi demonstrado por esses autores. Do lado positivo,
algumas das críticas lançadas nesses documentos têm base textual e precisam ser honestamente consideradas pelo Comitê de Revisão da NVI, que já está procedendo a algumas mudanças no texto do Novo Testamento, resultado de questionamentos e críticas francas enviados à Sociedade Bíblica Internacional.
Aqui me proponho a responder os dois tipos de críticas lançadas pelo Pastor Emídio Viana e pelo Prof. Donald Leaf, com o propósito de refutar afirmações desinformadas por ele feitas, avaliar algumas alegações sobre a teoria textual da NVI, e considerar, tanto em linhas gerais quanto em pontos específicos, suas críticas à NVI.
Correndo o riso de uma simplificação excessiva, o que se segue é um debate sobre versões em português e o texto grego em que elas se baseiam. Se este artigo servir para motivar o leitor ao estudo sério das Escrituras e um compromisso com o seu Autor, o mais importante terá sido alcançado.
- A NVI como um ataque às Escrituras
O primeiro parágrafo do texto EXPONDO OS ERROS DA NVI (doravante E.E.) abertamente acusa a NVI de ser um dos instrumentos de Satanás para “enfraquecer doutrinas cardeais” da Bíblia. Infere-se de tal afirmação, portanto, que teria sido produzida por pessoas comprometidas com tal agenda.
Essa afirmação velada é fruto do desconhecimento pelo autor de E.E. do fato de que cada um dos membros do Comitê de Tradução (doravante CT) ter sido selecionado por afirmar a doutrina da inerrância das Escrituras. O profundo respeito pela Palavra de Deus sempre marcou o trabalho do CT, no qual imperavam uma ética profundamente cristã e total repúdio a propostas de produzir uma Bíblia que contivesse os apócrifos (por mais comercialmente atraente que isso fosse), ou seguir o exemplo na New International Version britânica, que adotou uma linguagem genericamente neutra (desmasculinizando a Bíblia, atendendo aos ditames do feminismo protestante).
Em segundo lugar, o autor de E.E. dá a entender que a NVI utilizou acriticamente o chamado Texto Crítico (doravante TC) com o propósito de “enfraquecer diversas doutrinas como: divindade de Cristo, expiação por Cristo, morte vicária, etc.”. Tal alegação é decididamente falsa e novamente feita sem a devida consulta às pessoas envolvidas. O CT se compunha de pessoas que unanimemente afirmavam a inspiração, a inerrância e a infalibilidade dos escritos originais, mas que sim, diferiam em suas predileções quanto ao texto a ser utilizado como base da tradução, que utilizou as línguas originais como fonte e o texto da NIV americana como parâmetro (não como base ou fonte).
Como todo comitê, o CT operava em termos de votação e quando questões textuais se nos apresentavam, eram resolvidas por um sistema de voto. Os membros do CT cuja preferência era pelo Texto Majoritário (TMaj) aceitaram o sistema sabendo das implicações de serem minoria. Fizeram-no, todavia, na certeza de que são parte de uma busca sincera por uma versão mais fiel aos originais e mais acessível ao nível de leitura de nossa população do que as atualmente em uso.
Em honestidade para com o CT e a NVI, o autor de E.E. deveria reconhecer que foram eliminados os tristemente famosos colchetes em passagens-símbolo do TC, como Marcos 16.9-20 e João 7.53-8.11. Tal porém, não aconteceu; antes a ironia e a culpa por associação continuaram. Deveria reconhecer ainda que foram evitados comentários do tipo “os melhores manuscritos” e “os manuscritos mais antigos,” que são típicos dos defensores do TC e de obras contemporâneas sobre crítica textual, e cuja exclusão das notas de rodapé da NVI foi votada num grupo onde os partidários do Tmaj eram minoria. Isso testemunha que não houve uma adoção automática do TC.
Além do mais, o autor do E.E. usa o expediente desleal de impingir à NVI brasileira o prefácio da NIV americana, que definitivamente adotou o TC (seria mais correto falar de “um TC”) e uma abordagem eclética. Conquanto o CT da NVI tenha usado uma abordagem eclética nas passagens onde foi chamado a fazer decisões de crítica textual, esse ecletismo concedeu ao TMaj muito mais prestígio que qualquer das outras modernas traduções (não meras adaptações de antigas versões) brasileiras. De passagem, o mesmo se pode dizer para o Antigo Testamento, onde o Texto Massorético foi levado extremamente a sério como base para a NVI.
Exacerbando seu ataque, E.E. diz que a presença de notas de rodapé (que a NVI utiliza com muita economia em relação à NIV) é “um ataque frontal à doutrina da preservação.” Talvez o autor de E.E. considere que somente acreditam na doutrina da preservação aqueles que neguem a existência de variações textuais, ou que acreditem que “Deus preservou sua Palavra através do Textus Receptus,” frase com que encerra seu libelo. De igual modo, sugere que a adoção da filosofia de equivalência dinâmica para uma tradução signifique negar a preservação das Escrituras. Trata-se claramente de misturar bananas e laranjas. Qualquer pessoa que já tenha de alguma forma lidado com exegese e tradução das Escrituras (ou qualquer outro tipo de literatura) sabe que é impossível existir plena equivalência verbal (correspondência unívoca) ao passar um texto de uma língua para outra. Mas, aparentemente, é isso que sugere o texto de E.E.
Mais ainda, nesse detalhe da equivalência dinâmica. Usando da edição do NT NVI de 1994, o pastor Emídio utiliza parte dos “elogios” em sua crítica. Vale a pena expor o erro que essa crítica representa. A citação feita em E.E. veio da pena do Pastor Antônio Gilberto, que por um lapso de memória fez tal afirmação; não lembrou ele que o CT da NVI estava expressamente proibido de utilizar equivalência dinâmica, e expressamente instruído a usar equivalência formal. Infelizmente, por falta de conhecimento desse detalhe pelo então editor, a capa da primeira edição trazia essa inexatidão, e só foi apresentada ao CT quando os livros (50.000) já estavam prontos e começavam a ser vendidos. Assim, a recomendação do Pr. Gilberto acabou ferindo os próprios princípios sob os quais o CT sempre trabalhara.
- A Teoria Textual do Autor de E.E.
Fica evidente, pelo uso que faz da nomenclatura, que o autor de E.E tem certa familiaridade com as diversas teorias de crítica textual. Sua opção pelo TR é perfeitamente aceitável, mas obviamente beira as raias do fanatismo religioso quando ele afirma que “o TR foi organizado por Erasmo em 1516, representando a maioria esmagadora dos manuscritos.” Embora o TR seja muito semelhante ao texto encontrado na maioria dos manuscritos (não idêntico), o que Erasmo utilizou não foi um texto majoritário, pois dependia basicamente de meia dúzia de manuscritos datados todos de depois do século XII. O manuscrito que Erasmo usou para o livro de Apocalipse, tomado de empréstimo ao erudito humanista Johann Reuchlin, não continha Apocalipse 22:16-21, que Erasmo retroverteu do latim para o grego!
Talvez o autor de E.E. acredite que a inspiração das Escrituras se estenda também à tradução que Erasmo fez dessa porção de Apocalipse. Afinal, ele afirma que “Deus preservou sua Palavra através do Textus Receptus.”
Infelizmente para o autor de E.E. o próprio Erasmo revela uma predileção por manuscritos mais antigos, pois afirmou ter usado vetustissimis simul et emendatissimis (“os manuscritos mais antigos e mais corretos”). Conquanto isso não seja uma garantia de que “quanto mais velho melhor,” revela que mesmo o editor do TR tinha a preocupação de buscar os textos mais fidedignos. O fato de ter introduzido variantes em sua primeira edição sugere que deve tê-los encontrado. Isso levanta a pergunta: “Qual das edições de Erasmo deveria ter sido tomada como base para o TR?”
A edição do TR lançada pela Sociedade Bíblica Trinitariana (s.d., creio que em 1985) admite que usou como base o texto de Robert Estienne (1550) conforme editado por Teodore Beza em 1598. Essa obra, no entanto, só veio a ser conhecida como Textus Receptus cerca de 35 anos depois, quando foi editada em Leiden, na Holanda pelos irmãos Elzevir (segunda edição, 1633), na qual os próprios editores admitem ter feito correções, e a respeito do qual disseram: Textum ergo habes nunc ab omnibus receptum, in quo nihil immutatum aut corruptum damus (“Tens, portanto, o texto agora recebido por todos, no qual nada oferecemos de alterado ou corrupto.”) Assim, curiosamente, o chamado Texto Recebido utilizado pelos tradutores da Versão Autorizada inglesa (1611) não foi exatamente o Textus Receptus, designação que só foi dada a uma edição que veio 13 anos depois da publicação da VA (ou KJV). Embora as diferenças entre as edições de 1550 (Estienne) e a de 1624 (Elzevir) sejam pouco numerosas, elas existem e a pergunta permanece: “Qual TR é o verdadeiro TR?”
Seria o texto da quinta edição de Erasmo? Esse texto foi editado por ele com diversas leituras da Poliglota Complutensiana (obra católico-romana), inclusive a famosa Comma Johanneum (1 João 5.7-8), e depois editado por Beza, que confessa, ele próprio, ter dúvidas quanto à autenticidade de João 8:1-12. Temos assim, uma situação confusa quanto ao que seria o texto que supostamente preservou os originais do NT. Será que Beza fazia parte desse sinistro complô para minar a confiança do povo de Deus nas Escrituras?
Será que o autor de E.E. se sente à vontade em companhia de tais parceiros? Ou será que a primeira edição de Erasmo é a que vale? Mas infelizmente ela não continha 1 João 5:7-8 e tinha um pedaço retrovertido do latim (Ap 22:16-21). Que fazer?
O autor de E.E. sugere que pastores, líderes e membros das igrejas devem se aprofundar mais no assunto de crítica textual. Como é que vai explicar essa grande confusão na origem do texto que supostamente contém o original do NT? E o que dizer do fato que o seu compilador (e vários de seus colaboradores) jamais ter evidenciado fé salvadora em Jesus Cristo, único mediador entre Deus e os homens? De ter repudiado a Reforma protestante? Teria Deus usado tal instrumento para a preservação de Sua Palavra?
Não seria mais lógico trabalhar com uma outra hipótese, menos radical? Ou seja, que o valor do TR está em preservar uma tradição antiquíssima e bem documentada que se acha expressa na maioria dos manuscritos (à qual Erasmo e seus sucessores imediatos jamais tiveram acesso) e que essa tradição precisa ser confrontada com outros tipos-textuais para que se prove a sua superioridade? Essa parece ser a abordagem do livro de Wilbur N. Pickering (The Identity of the New Testament Text) que ele menciona no final de seu documento, e cuja eventual tradução para o português será uma felicíssima adição à literatura existente sobre crítica textual.
Depois de levantados esses problemas na abordagem textual do autor de E.E., podemos analisar mais detalhadamente algumas de suas observações quanto às escolhas textuais de NVI. Vale a pena dizer, a princípio, que várias delas são pertinentes aos olhos de quem opta por um Texto Majoritário (ainda que não optando pelo TR). Na verdade, despertaram neste revisor o desejo de que se produzisse um Novo Testamento NVI com base no Tmaj. Tal sugestão já foi encaminhada à SBI na pessoa de seu secretário executivo. É de se esperar que o autor de E.E. e seu consultor técnico tenham interesse em tal proposta pois não estão “defendendo as traduções, mas sim os textos que foram usados para essas versões.”
Problemas Textuais Específicos
O tratamento destas questões é complicado pela infeliz pressuposição do autor de E.E. de que as escolhas textuais da NVI tenham sido motivadas pelo desejo de destruir doutrinas fundamentais do cristianismo bíblico. É impossível argumentar contra pressuposições dessa natureza. Podemos apenas reafirmar nossa fidelidade a todas as doutrinas que o autor de E.E. nos acusa de atacar. É necessário, no entanto, tomar algumas passagens por ele citadas como representativas do procedimento em ambos os lados do debate.
- Marcos 9:24:
Embora apenas mencionada pelo autor de E.E. como um ataque à divindade de Jesus, esta passagem é um exemplo típico de seu raciocínio. Aqui a NVI omitiu a palavra grega (senhor), o que o autor de E.E. classificou como negação da divindade de Cristo.
Textualmente é um caso de diferença entre o TMaj e o TC. A NVI seguiu o TC, omitindo a palavra. Legitimamente, o máximo de que o autor de E.E. poderia acusar o CT é de uma escolha textual ruim. Além de pressupor nossa predisposição ariana, comete o erro exegético de impor ao pai do endemoninhado (pois foi ele que usou a expressão) uma concepção de Cristo que apenas os discípulos tinham, e até então de modo incipiente, percebido. Sem impormos nossa própria leitura do NT à passagem, Marcos 9:24 apresenta um homem que trata Jesus como “mestre,” no sentido de um rabi, e “senhor” em virtude da autoridade que sua posição como rabi lhe conferia. Omitir a palavra “senhor” (lembremo-nos de que no original não havia diferença entre “Senhor” e “senhor”), portanto, não é um ataque à doutrina da divindade de Cristo.
- Atos 8:37:
Esta passagem é alistada como um ataque à divindade de Cristo e à doutrina da salvação, com base na frase “creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus,” supostamente proferida pelo etíope. Nesta passagem, o autor de E.E. opta pela leitura do TR contra a leitura to TMaj e do TC. A evidência em favor da frase (com cujo conteúdo claramente concordamos) é realmente muito frágil (o manuscrito E, 8 minúsculos, alguns manuscritos da Ítala e da Vulgata e versões; entre os chamados pais da Igreja, Irineu e Agostinho). Mesmo que se possa atribuir alguma antigüidade à leitura, ela fica claramente rejeitada (pelos cânones propostos por Burgon e defendidos por Pickering). Talvez por isso, Hodges e Farstad, editores do The Greek New Testament According to the Majority Text e defensores do TR (em oposição ao TC), optaram por omitir essa passagem e colocá-la apenas no aparato crítico. Talvez o autor de E.E. queira classificá-los também como hereges e destruidores da doutrina da divindade.
- 1 Timóteo 3:16:
Esta passagem também é alistada entre os ataques à divindade de Jesus Cristo. Não tendo do que acusar o texto da NVI, que optou por seguir o TMaj (indo contra a NIV, atenuando a tradicional NR de outras versões modernas, e não usando a infeliz frase “os melhores manuscritos”), o autor de E.E. acusa a NVI de por em dúvida a própria escolha. Até quando confrontado com uma situação de escolha textual comum, enfatiza a NR. Quando o reverso acontece, todavia não reconhece que a NVI informa o leitor de alternativas textuais conservadoras.
- 1 João 4:3:
Nesta passagem o autor de E.E. acusa a NVI de “aqui2 agrada[r] as falsas religiões, pois anula[m] que Cristo veio em carne.” A presença do número 2 é explicada no final do documento como algo que não ocorre em toda a NVI. A impressão que fica ao leitor é de uma deliberada omissão da encarnação de Jesus. O que o autor de E.E. não menciona é que no versículo anterior, 1 João 4:2, a mesma frase está presente, e que qualquer leitor poderia verificar a realidade da encarnação lendo a linha superior do texto. (Talvez além de mal-intencionados os tradutores da NVI tenham sido incompetentes por não perceberem que também precisariam extirpar, na frase imediatamente anterior a frase omitida no verso 3.) O autor de E.E. tem todo o direito de questionar a escolha textual de que talvez tenha ocorrido parablepse (um erro de visão do copista) quer homoioteleuton, quer homoioarchon, no processo de cópia do TMaj, ou até sugerir que houve uma omissão deliberada nos manuscritos egípcios desta passagem, que deram origem ao TC, mas extrapolou ao deduzir (presumir) que diferença entre o TR e a NVI tenha sido motivada por preferências heréticas.
- Colossenses 1:14:
Este texto está alistado como um ataque à expiação por Cristo e só pelo seu sangue. Em Colossenses 1.14, o TMaj está um pouco dividido, com maior parte inclinada para a omissão das palavras (“por meio do seu sangue”). Uma vez mais, Hodges e Farstad optam por seguir o TC (Será que secretamente são do time dos liberais?). A acusação feita pelo autor de E.E. uma vez mais só teria sentido se a NVI e o TMaj tivessem retirado “pelo seu sangue” de Efésios 1.7, a passagem paralela (de onde provavelmente veio a adição no TR e traduções dele dependentes).
- Atos 9:5-6:
Outro dos supostos ataques à divindade de Cristo, esta opção textual do autor de E.E. é rejeitada pelo TMaj e pelo TC. A origem mais provável desta frase no TR é a passagem paralela em At 26:14. A omissão da palavra (uma legítima diferença textual entre o TC e o TMaj) na primeira frase do verso 6 é claramente mitigada pela sua presença nos versos 5 e 10. Uma vez mais, a ênfase dada pelo autor de E.E. me parece injustificada.
- 1 Pedro 2:2:
Novamente o autor de E.E. usa a tática da culpa por associação para relegar a NVI ao rol dos hereges. A inclusão da expressão grega (“para a salvação” ou “na salvação”) é atribuída à crença de que “a salvação vem por um processo gradual de crescimento.” Temos aqui um caso em que a tradição textual bizantina (TMaj) apresenta divisão. A leitura da NVI é apoiada por alguns dos principais manuscritos dessa tradição. Exceto pela sua escolha prévia do TR como representativo do original inspirado, o autor de E.E. deveria pelo menos considerar a possibilidade de que Pedro estivesse usando o mesmo tipo de proposta teológica que Paulo usou em Filipenses 2:13, ou seja, que há um crescimento na experiência e no desfrute da salvação. Que se questione a correção da tradução (que me parece pode ser melhorada nos termos sugeridos acima) e até a escolha textual (que me parece um caso aberto), mas não se impinja tal acusação de heresia a um grupo comprometido com a salvação pela graça por meio da fé e nada mais.
- 2 Tessalonicenses 2:8:
Esta passagem está alistada como umas das “gravíssimas contradições.” A NVI é acusada de contradizer Apocalipse 19:20 ao traduzir aqui o verbo grego ou por “matará”. Ora, esse verbo indica “consumir” ou “destruir” em Lucas 9:54 (ideia de consumir com fogo) e em Gálatas 5:15 (sentido figurativo). Assim sendo, especialmente em vista de Lc 9:54, a tradução da NVI é aceitável e não configura contradição. Como explicar a tradução “desfará” da Almeida Fiel? O problema postulado em Ap 19:20 é facilmente respondido pelo fato de o anticristo e o falso profeta serem lançados no lago de fogo já dotados do tipo de vida (=existência) que lhes permita sofrer, sem serem consumidos ou aniquilados (o que aconteceria se fossem lançados em corpos naturais num lago de fogo literal, que, presumo, seja a crença do autor de E.E.) a eterna pena de sua rebeldia contra Jesus Cristo.
- 1 João 5:7-8:
Esta controvertida passagem foi alistada como um ataque da NVI contra a doutrina da Trindade. O autor de E.E. compara a NVI à bíblia dos Testemunhas de Jeová, utilizando mais uma vez o golpe baixo da culpa por associação. Será que gostaríamos de basear nossa crença da doutrina da Trindade numa passagem que não constava da primeira edição do TR (1516, que o autor de E.E. declara reconhecer como o seu TR, p. 1 do documento) por que Erasmo não a encontrara em nenhum manuscrito grego disponível? A adição da Comma Johanneum em edições posteriores se deveu a protestos iniciados pelos católicos romanos que produziram a Poliglota Complutensiana que, dominada pela Vulgata, incluíra o texto. Essa derivação recente se pode ver na terceira edição do texto de Erasmo, onde a ausência dos artigos definidos () denuncia um original latino (o latim não possui artigo definido). Como a Complutensiana incorporava os artigos, edições subsequentes do texto de Erasmo vieram a incluí-los.
O autor de E.E. menciona um livro escrito em defesa da Comma, mas não aduz quaisquer argumentos em seu favor. Não tenho acesso ao referido livro, e, portanto, não posso emitir opiniões sobre a validade de seus argumentos.
Ele afirma ainda que “o rodapé da NVI tem duas grandes inverdades.” Quais seriam elas? O aparato crítico do Greek New Testament da United Bible Society (26ª edição de Nestle) indica que a Comma aparece em vgmss, o que indica que a afirmação da NR da NVI é correta. O aparato indica ainda que os manuscritos gregos que contém a Comma são os seguintes: 221, 2318 (61, 88, 429, 629, 636 918 também são alistados como contendo pequenas variações), mas nenhum desses é alistado ou datado nas várias listas de informação sobre manuscritos disponíveis. I. Howard Marshall, em seu comentário sobre as epístolas de João, embora apresentando uma lista ligeiramente diferente, afirma: “Nenhum desses é anterior ao século XIV. A passagem não é citada por qualquer dos pais gregos, e sua primeira aparição em grego é num relatório conciliar de 1215. Nenhuma outra das antigas versões do Novo Testamento a contém, exceto a versão latina … [embora não apareçam] nas formas mais antigas da Ítala e na edição da Vulgata feita pelo próprio Jerônimo … a referência definida mais antiga é feita no Liber Apologeticus do escritor espanhol Prisciliano (ob. c. 385).”[3] Até prova em contrário, a NR da NVI não falou inverdade quando disse que o texto da Comma “não é encontrado em nenhum manuscrito grego anterior ao século XII”. O ônus da prova se encontra com o autor de E.E.
Vale lembrar, ainda uma vez, que o The Greek New Testament According to the Majority Text também omite a Comma, alistando o TR como a única testemunha a seu favor.
Erros Textuais que Comprometeriam a Doutrina da Inerrância
Nessa categoria, da qual tratarei apenas dois exemplos dados em E.E., aparecem ao mesmo tempo uma ingenuidade exegética e um dogmatismo dignos de nota. Em Marcos 1:2, o texto adotado pela NVI exige muito maior firmeza quanto à inerrância do que o do TR. Conquanto minha preferência pessoal seja pelo TMaj (= TR), precisamos reconhecer que o mesmo expediente de alistar dois profetas sob uma única autoria acontece em Mateus 27:9, onde Jeremias e Zacarias aparecem sob a rubrica de Jeremias, e onde não existe problema textual. Será que Mateus está em contradição? Há maneira de defender a inerrância ainda que o texto original de Marcos dissesse “Isaías” em vez de “profetas”? Quem afirmar que não terá que engolir Mateus 27:9 como um “erro” das Escrituras. Assim, mais uma vez, pode até proceder a crítica à opção textual, mas a acusação doutrinária é infundada.
De igual modo, a questão do vinho e do vinagre em Mateus 27.34 reflete a expressão “procurar chifre em cabeça de cavalo.” A diferença textual entre vinho e vinagre
em grego é mínima () e poderia ser explicada tanto para um lado quanto para outro. O que dizer de Marcos 15:23, no TR, que usa “vinho”? Estará o TR em contradição com Salmo 69:21 [22 no Hebraico], onde surge a palavra “vinagre”? Quem sabe o fato do vinagre bíblico ser nada mais que vinho azedo (ver NVI em João 19:29) tenha motivado esse tipo de ambiguidade inerrante que o autor de E.E. apressadamente (ou por falta de maior destreza exegética) atribuiu à natureza herética da NVI?
Considerações Finais
Ao concluir esta resposta ao documento Expondo os Erros da NVI reitero minha tristeza pelo mesmo não ter sido apresentado diretamente à SBI como uma crítica aberta e direta à qualidade de nosso trabalho. Pelo fato do Novo Testamento estar em processo de revisão, ela teria sido útil. Infelizmente, agora é tarde para incluir entre as várias mudanças qualquer das propostas do autor de E.E.
Lamento ainda que ele tenha sido deliberadamente cego para com a tendência mais conservadora da NVI em relação à sua equivalente americana (NIV). Nosso tratamento de textos controversos como Marcos 16:9-20 e João 7:53-8:11 (retirando os colchetes e não utilizando terminologia tendenciosa) revela, no mínimo, nossa preferência pela inclusão de tais passagens no original.
A interação com o material serviu para demonstrar que o trabalho textual com a NVI pode e deve ser retomado. Há diversas observações textuais do autor de E.E. que são críticas válidas e necessárias e a SBI deverá lhes dar ouvidos, ainda que a aproximação tentada com o internauta que disseminou o texto não tenha produzido resultados animadores, senão a mesma atitude negativa que transpira nas seis páginas de que constou o documento aqui considerado.
Devo admitir que um dos resultados da interação com E.E. foi desejar uma edição da NVI com base no TM, que me parece uma opção textual mais sábia que o TR, a quem o autor de E.E. empresta valor de original preservado. Fica a sugestão apresentada à SBI como uma possível alternativa não apenas para indivíduos e grupos que desejem uma versão mais moderna com base em uma teoria textual mais conservadora, mas também para ampliar os recursos disponíveis para treinamento em crítica textual nas escolas brasileiras.
Atibaia, 24 de setembro de 1999
[1] Será que esse intervalo de três séculos tem alguma significância? Línguas são como que entidades vivas, em constante mutação. Para efeito de comparação, a primeira edição da Bíblia completa em português surgiu no final do século XVIII, ou seja, três séculos atrás.
[2] VOX SCRIPTURAE 3:2 (Setembro de 1993):215-226
[3] I. Howard Marshall, The Epistles of John, NICNT (Grand Rapids: Eerdmans, 1978), p. 236.