Ao contrário do que muitos podem pensar, a Reforma Protestante, iniciada na Alemanha por Martinho Lutero no século XVI, alcançou o Brasil relativamente cedo. Já no ano de 1557, os franceses estabeleceram uma colônia no Rio de Janeiro, trazendo alguns pastores calvinistas para o Brasil (comissionados pelo próprio Calvino). Esta primeira tentativa protestante de colonizar o Brasil nos deixou uma Confissão de Fé escrita por Jean du Bordel. Esta foi a primeira confissão de fé escrita nas Américas, selada com o sangue dos calvinistas mortos pelo vice-almirante francês Villegaignon.
Quase cem anos mais tarde, os holandeses tentaram implantar uma colônia no nordeste do Brasil. Fundada em 1630, em Pernambuco, a colônia cresceu rapidamente. Em 1641, os holandeses dominavam a área, desde o Maranhão até Sergipe. Este período ficou conhecido como o Brasil Holandês (1630-1654).
Durante este período de ocupação holandesa no Brasil, encontra-se uma história que talvez seja pouco conhecida: a história da Igreja Reformada Potiguara, uma igreja calvinista entre os índios brasileiros.
A Igreja Reformada Potiguara foi uma igreja de confissão calvinista, estritamente contra o catolicismo português e com grande consciência teológica. O fato mais curioso que podermos perceber é que existiram índios calvinistas no Brasil do século XVII.
Formação da Igreja Reformada Potiguara
A história da Igreja Reformada Potiguara se confunde e se mescla com a história do Brasil Holandês. Para entendermos melhor a formação desta igreja, precisamos compreender um pouco sobre este período da história do Brasil.
A primeira tentativa dos holandeses de invadir os territórios portugueses no Brasil ocorreu ainda em 1624, na Bahia, mas durou apenas um ano. Logo após este período, uma nova tentativa de invasão ocorreu em 1630 e, desta vez, foi bem sucedida.
Nesta época, cada Estado possuía a sua igreja oficial. Quando este Estado fundava uma nova colônia e expandia o seu território, a igreja o seguia, levando ministros para acompanhar os exploradores e para proclamar o evangelho aos povos indígenas. Juntamente com a invasão holandesa no Brasil, veio a Igreja Cristã Reformada (igreja oficial do Estado Holandês), servida por cerca de cinquenta pastores e cem evangelistas.
Na medida que os holandeses ampliavam o território conquistado no Brasil, novas congregações reformadas eram implantadas nas terras dominadas. Durante algum tempo, existiram vinte e duas igrejas protestantes no Nordeste. Os missionários holandeses concentraram os seus esforços com mais intensidade entre os índios da tribo potiguara. Houveram muitas conversões entre este povo.
O primeiro contato entre índios potiguara e holandeses ocorreu em 1625, na Baía da Traição, Paraíba, quando treze índios embarcaram voluntariamente para a Holanda em união política com os holandeses. Dentre estes índios, pelo menos dois se tornaram protestantes: Pedro Poty e Antônio Paraupaba, dois personagens muito importantes para a história do protestantismo entre os índios.
Na Holanda, estes dois índios conheceram várias cidades impor-tantes, aprenderam a língua dos holandeses, foram educados com o melhor que a Holanda tinha para oferecer e se tornaram calvinistas. Quando retornaram ao Brasil, Poty e Paraupaba se tornaram líderes políticos e serviram como mediadores entre os índios e os holandeses. Mas talvez uma das principais funções deles foi a de missionários entre os próprios índios. Eles ajudaram os holandeses na fundação do protestantismo no Brasil.
Assim começou a Igreja Reformada Potiguara. Isso é algo notável, pois foi diferente do que os portugueses haviam feito com o catolicismo no Brasil. O protestantismo chegou através de dois índios conhecidos. Não foi algo completamente estranho para os nativos. Aos poucos, mais conversões aconteceram entre os índios potiguara e a igreja foi tomando forma e crescendo.
A educação e ensino na igreja potiguara
Desde o início, os holandeses se preocuparam muito em educar os índios, pois desejavam que eles pudessem ler e compreender as Escrituras Sagradas. Um dos documentos da época diz o seguinte a respeito do que deveria ser feito para a educação dos nativos:
“Deve ser observado que em todos os lugares em que há crianças, e especialmente no Recife, se fundem escolas; neste último deve haver além disso um mestre português. […] O terceiro meio é estabelecer mestres de escolas, tanto holandeses como índios, se for possível nas aldeias de índios.”[1]
O que nos chama atenção é que surgiram índios que eram professores. Os holandeses buscaram formar índios para que eles pudessem ensinar o seu próprio povo. Estes professores indígenas foram formados para dar aulas de alfabetização e ensinar as doutrinas da Igreja Reformada Holandesa. Eles também ensinavam noções de matemática, história, geografia e ciências. É interessante notar que, no Brasil do século VXII, existiram professores indígenas pagos pelo próprio governo holandês.
A teologia dos potiguaras
Alguns documentos escritos pelos índios Pedro Poty e Antônio Paraupaba, além de relatórios posteriores de padres jesuítas, mostram que os índios da Igreja Reformada Potiguara tinham um alto nível de conhecimento teológico. Termos como batismo, confessar pecados somente a Cristo, missa como um culto falso, Deus em todo lugar, graça especial, graça singular, a luz da palavra santa de Deus, onipotente, entre vários outros, aparecem nos escritos que chegaram até nós. Isso de-monstra que os índios haviam aprendido muito sobre a teologia refor-mada. Eram verdadeiros calvinistas.
Souza diz que
“os termos teológicos citados pelos índios no relatório de Vieira sugerem ao pesquisador mais atento sua profundidade teológica. Se for levado em consideração que os mestres-escolas holandeses seguiram cronologicamente o Catecismo de Heidelberg, seriam necessários 26 domingos para ter conhecimento sobre Batismo. Sendo assim, os assuntos anteriores ao batismo também eram conhecidos pelos potiguaras, isto é: pecado original, salvação, Trindade e justificação pela fé. […] Afirmar que a missa é um culto falso […] remete a saber diferenciar o que acontece na Comunhão, se o pão e o vinho transformam-se ou não no Corpo e no Sangue de Cristo.”
Ao que tudo nos indica, os índios potiguaras estavam muito bem treinados na teologia, e aquilo que sabiam não era algo simples. É claro que nem todos possuíam a mesma quantidade de informações, mas o resultado do ensino teológico entre os índios parece ter tido um grande efeito.
A Genebra dos Sertões
Em 1654, os holandeses finalmente foram expulsos do Brasil pelos portugueses. Alguns índios potiguara e tapuias conseguiram embarcar junto dos holandeses para outras colônias no Caribe, América do Norte e Ásia. Mas a maioria ficou.
Os índios que ficaram no Brasil temeram uma vingança dos portugueses, pois eles haviam se aliado ao inimigo e buscado a religião dos inimigos. Pensar que os portugueses não os perdoariam por isso não é algo tão estranho. Assim, os índios decidiram se refugiar na Serra da Ibiapaba, que era um bom lugar para se proteger e se esconder, caso um ataque português acontecesse. Eles marcharam quase setecentos e cinquenta quilômetros em meio os sertões. Eram ao todo quase quatro mil pessoas, entre eles crianças e idosos.
Três grupos indígenas surgiram na serra: os tapuias, que não eram protestantes, mas apenas aliados dos holandeses; os potiguaras, que formavam a igreja; e os tabajaras, que eram residentes da serra.
Lá os potiguaras começaram a evangelizar os tapuias e muitos se converteram à fé reformada. Este foi um período de grande importância para a Igreja Reformada Potiguara, pois foi na serra, durante dois anos, que a igreja funcionou sozinha, sem a presença de holandeses ou outros brancos. Foi uma igreja inteiramente indígena.
Os católicos enviaram o seu mais eloquente pregador, Padre Antônio Vieira, para trazer os índios de volta ao catolicismo romano. Vieira chegou à serra em 1656 e escreveu relatórios descrevendo como eram os índios naquele lugar. É através desses relatórios que nós podemos perceber o quanto a teologia calvinista estava presente na vida dos índios potiguaras. O padre os chamam de “os de Pernambuco”:
“Com a chegada destes novos hóspedes [os potiguaras], ficou Ibiapaba verdadeiramente a Genebra de todos os sertões do Brasil porque muitos dos índios de Pernambuco foram nascidos e criados entre os holandeses, sem outro exemplo nem conhecimento da verdadeira religião [para o padre, a religião católica].”
Vieira ainda afirma que,
“na veneração dos templos, das imagens, das cruzes, dos sacerdotes, e dos sacramentos, estão muitos deles tão Calvinistas e Luteranos como se nasceram em Inglaterra ou Alemanha. Estes chamam a Igreja [Católica] […] falsa igreja; e da doutrina […] patranhas dos padres.”
O nível de conhecimento teológico que os índios possuíam é notável, pois chega ao ponto de terem condições de rebater os ensinamentos católicos. O padre chama o local de Genebra, o que é um fato muito curioso, visto que a cidade de Genebra, na Suíça, era o refúgio protestante da Europa. Ter um local brasileiro, no século XVII, sendo comparado com a Genebra de Calvino é algo a ser admirado, ainda mais porque tal local era um refúgio para índios, e não para europeus. Além disso, também é importante perceber o quanto estes índios foram fiéis às doutrinas reformadas e à igreja a que pertenciam, não se deixando intimidar nem mesmo com o risco de serem mortos pelos portugueses. Eles decidiram lutar e resistir.
Com o passar dos anos, aos poucos a Igreja Reformada Potiguara foi desaparecendo. Alguns índios foram arrebanhados pelo catolicismo, outros fugiram e lutaram, mas o fato é que a igreja desapareceu, assim como muitas igrejas do primeiro século. A vontade de Deus foi essa, e não cabe a nós perguntar por que razão Deus assim preferiu. Mas o fato é que algumas famílias indígenas mantiveram noções calvinistas por gerações e, no século XVIII, obras apologéticas católicas ainda eram produzidas mostrando que o protestantismo indígena ainda incomodava os padres.
A relação entre Índios e Holandeses
A mentalidade protestante influenciou grandemente a relação entre índios e holandeses no Brasil. O entendimento protestante de que a igreja não é instituição terrena, mas sim o Corpo de Cristo, formado por todos os eleitos, de todos os lugares e de todas as épocas, fez os holandeses enxergarem os índios como parte de sua igreja. Os holandeses inseriram o índio na sua cultura, no seu Estado e na sua sociedade. Muitos índios brasileiros recebiam salário dos holandeses como servidores públicos e muitos mantiveram papéis fundamentais nas relações com o Estado Holandês. Pedro Poty chegou a ter um secretário pessoal que era um holandês.
Segundo Souza,
“enquanto que, em relação aos portugueses, a escravidão indígena era essencial para a manutenção do seu Estado no Brasil, o Estado Holandês incorporou os índios em sua administração. […] O grande diferencial da colonização holandesa no Nordeste brasileiro foi que [os holandeses] precisavam dos índios. Sem eles, principalmente os potiguaras, o Brasil Holandês seria impossível de acontecer. [Os índios] estiveram presentes desde o início.”
Os índios também sabiam das vantagens de fazer parte do Estado Holandês. Em uma de suas cartas, Pedro Poty afirma:
“Estou bem aqui e nada me falta; vivemos mais livremente do que qualquer de vós, que vos mantendes sob uma nação que nunca tratou de outra coisa senão nos escravizar. Os cuidados que dizeis ter por mim e o favor que os portugueses nos dispensariam não são mais do que histórias contadas para nos iludir. […] Não acrediteis que sejamos cegos e não possamos reconhecer as vantagens que gozamos com os holandeses (entre os quais fui educado). Jamais se ouviu dizer que tenham escravizado algum índio ou mantido com tal, ou que hajam em qualquer tempo assassinado ou maltratado algum dos nossos. Eles nos chamam e vivem como irmãos; portanto, com eles queremos viver e morrer.”
Este relato de Poty nos mostra como ele conhecia os holandeses e como se via como um irmão. Uma clara alusão ao fato de saber que compartilhava a mesma fé dos holandeses. Eles se viam como parte do Estado Holandês, acreditavam e lutavam por este Estado e pela mesma fé.
Uma missão Calvinista
A Igreja Reformada Potiguara foi fruto de um imenso trabalho missionário de calvinistas entre os nativos brasileiros. A história desta igreja nos mostra de que Deus tem os seus eleitos em todas as partes do mundo, e é nosso dever chegar até os confins da Terra para proclamar as boas novas da salvação.
Esta história nos inspira a pregar para todos, mesmo que nos mais remotos lugares. Nos inspira a fazer assim como os holandeses que não pouparam esforços para trazer o evangelho para o nosso país e plantar uma semente que gerou um grande e lindo fruto.
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REFERÊNCIAS:
- CAIRNS, Earle E. O Cristianismo através dos séculos: uma história da igreja cristã. Vida Nova. 2008.
- SCHALKWIJK, Frans Leonard. Igreja e Estado no Brasil Holandês (1630 – 1654). São Paulo: Cultura Cristã, 2004.
- SCHALKWIJK, Frans Leonard. Índios Evangélicos no Brasil Holandês. Revista Fides Reformata 2/1 (1997).
- SCHALKWIJK, Frans Leonard. Os Livros no Brasil Holandês e seu significado para obreiros evangélicos brasileiros. Ciências da Religião – História e Sociedade, Volume 7, n. 1 (2009).
- SOUZA, Jaquelini de. A Igreja Potiguara: A saga dos índios protestantes no Brasil Holandês. Revista Historiar, ano II, n. I (2010).
- SOUZA, Jaquelini de. A Primeira Igreja Protestante do Brasil: Igreja Reformada Potiguara (1625-1692). São Paulo. Mackenzie 2013.
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[1] Todas as citações transcritas neste artigo foram retiradas do livro A Primeira Igreja Protestante do Brasil: Igreja Reformada Potiguara (1625-1692), de Jaquelini de Souza.