A UTILIDADE DA CORREÇÃO

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A UTILIDADE DA CORREÇÃO

Por Agostinho de Hipona

Agostinho de Hipona
Os homens devem admitir a necessidade da correção quando pecam. Que a correção não sirva de pretexto com relação à graça nem a graça no referente à correção. Pois o pecado merece um castigo justo e o castigo está ligado à correção, a qual é aplicada a modo de remédio, ainda que a saúde do doente seja incerta. A correção feita ao participante do número dos predestinados sirva-lhe de salutar remédio, e tenha caráter penal ao que dele está excluído.

Tendo em conta esta incerteza, a correção deve revestir-se de caridade, dado que se desconhece seu efeito, e acompanhada da oração em favor do corrigido implorando-se sua cura. Porém, como os homens, mediante a correção, ou vêm ou retornam ao caminho da justiça, quem opera a retidão nos corações, senão Deus que dá o incremento, seja quem for o que planta ou rega, seja quem for o que trabalha nos campos ou nos bosques, aquele Deus cuja vontade de salvar liberdade humana nenhuma pode resistir?

Pois, o querer ou não querer depende da vontade do que quer ou não quer, mas não impede a ação da vontade divina nem supera seu poder. Mesmo aqueles que fazem o que ele não quer, ele faz com que façam o que ele quer.

A respeito da afirmação: Quer que todos os homens sejam salvos (1 Tm 2.4), e, não obstante, nem todos se salvem, admite várias interpretações, das quais comentamos algumas em outros escritos. Aqui mencionarei apenas uma.

Está escrito: Quer que todos os homens sejam salvos, abrangendo todos os predestinados, porque há no meio deles todo gênero de pessoas. Tem o mesmo sentido que a afirmação de Cristo aos fariseus: Pagais o dízimo de todas as hortaliças, entendendo-se todas as que colhiam, mas não pagavam o dízimo de todas as hortaliças existentes no mundo. No mesmo estilo de expressar, diz o Apóstolo: Assim como eu mesmo me esforço para agradar a todos em todas as coisas (1 Cor 10,33). Será que ele agradava também a todos os seus perseguidores? Ele agradava todo gênero de pessoas reunidas pela Igreja de Cristo, tanto os já convertidos como os futuros.

Pode-se afirmar com certeza que a vontade de Deus, que tudo o que faz, no céu e na terra (Sl 134,6), e que fez mesmo as coisas futuras (Is 45.11), as vontades humanas não podem impedi-la que faça o que quer e que mesmo das vontades humanas faz o que quer e quando quer. Parece ser um exemplo contrário, para só citar um entre alguns, o caso de Saul, quando Deus quis dar-lhe o reino. Ficou a critério dos israelitas submeter-se ou não a este rei, o que significava a liberdade de resistir também a Deus. Mas não aconteceu assim, pois o Senhor contou com a vontade deles ao dispor de poder absoluto sobre os corações humanos, inclinando-os a seu bel-prazer. Pois, assim está escrito: E Samuel despedia todo o povo, cada um para a sua casa. E Saul voltou também para a sua casa em Gibeá; e foi com ele uma parte do exército, a quem Deus tinha tocado o coração. Porém os filhos de Belial disseram: “Porventura poderá este salvar-nos?” E desprezaram-no e não lhe levaram presentes (1 Sm 10.25-27). Alguém dirá talvez que não acompanharia Saul algum daqueles cujo coração o Senhor tocou para irem com ele, ou que o acompanharia algum dos filhos de Belial, cujo coração o Senhor não tocou?

Há também uma referência a Davi, a quem o Senhor estabeleceu no reino com absoluto êxito. Assim está escrito: E Davi fazia progressos adiantando-se e fortalecendo-se, e o Senhor dos exércitos estava com ele (! Cr 11.9). E mais adiante esta sentença: Amasa, porém, primeiro entre os trinta, revestido do Espírito, disse: “Nós somos teus, ó Davi, e estamos contigo, ó filho de Jessé. A paz, paz seja contigo, e a paz seja com os teus defensores, porque o teu Deus te protege. (1 Cr 12.19). Poderia ele resistir à vontade de Deus e não obedecer àquele que lhe moveu o coração pelo seu Espírito, do qual se revestiu para isto querer, dizer e fazer?

Um pouco depois diz a mesma Escritura: Todos estes homens guerreiros, prontos para combater, foram com coração sincero a Hebron, para constituir Davi rei sobre todo o Israel (I Cr 12.38). Escolheram Davi como rei por sua vontade. Quem não vê? Quem o nega? Não fizeram hipocritamente e maldosamente o que fizeram pacificamente. Contudo, agiu em seu espírito aquele que domina os corações humanos. Por isso a Escritura afirmou antes: E Davi fazia progressos, adiantando-se e fortalecendo-se, e o Senhor dos exércitos era com ele.

Por esta razão, o Senhor todo-poderoso, que estava com ele, levou-os a constituírem Davi como rei. E como os levou? Acaso amarrou-os com laços materiais? Agiu internamente, apossou-se de seus corações, moveu-os, induziu-os, servindo-se de suas próprias vontades, inspiradas por ele.

Se quando Deus quer constituir reis neste mundo, mantém seu poder sobre as vontades humanas, mais do que eles as suas, quem senão ele faz com que a correção seja salutar e pro-ceda a esta correção no coração do corrigido para que seja levado ao reino celestial?