A Leitura da Bíblia e a Pós-Modernidade – Augustus Nicodemus

 

Meu alvo nesse pequeno artigo é mostrar como alguns elementos filosóficos e religiosos da pós-modernidade afetam a interpretação bíblica dos evangélicos, e em especial, dos reformados. Os reformados calvinistas têm tradi-cionalmente interpretado as Escrituras partindo de alguns pressupostos. Primeiro, que as Escrituras são divinas, em sua origem, infalíveis e inerrantes no que ensinam, seguras e certas no seu ensino. A Bíblia é a revelação da verdade. Só existe uma religião certa, a que se encontra revelada na Bíblia. Tudo o que é necessário à salvação e à vida cristã estão claramente reveladas na Escritura. Não há salvação fora do Cristianismo. Esta salvação é claramente exposta na Bíblia.

Existem alguns aspectos da pós-modernidade que ameaçam a interpretação reformada das Escrituras. Primeiro, o conceito de tole-rância. Eu me refiro à ideia contemporânea de total complacência para com o pensamento de outros quanto à política, sexo, religião, raça, gênero, valores morais e atitudes pessoais, ao ponto de nunca se externar seu próprio ponto de vista de forma a contradizer o ponto de vista dos outros. Esse tipo de tolerância não deve ser confundida com a tolerância cristã, pois resulta da falta de convicções em questões filosóficas, morais e religiosas: “A tolerância é a virtude do homem sem convicções” (G. K. Chesterton). É fortalecida pela queda na confiança na verdade, causada pelo avanço da pós-modernidade.

É aqui que entra o conceito de “politicamente correto”. Significa aquilo que é aceitável como correto na sociedade onde se vive. É o que se faz em um grupo sem que ninguém seja ofendido. Por exemplo, não é “politicamente correto” tomar atitudes ou afirmar coisas que venham a desagradar pessoas, como por exemplo, emitir valores morais sobre o comportamento sexual das pessoas.

É “politicamente correto” ouvir o que os outros dizem sem qualquer crítica, reparo ou discordância explícita. Aqui devemos também notar em especial a preocupação em não ofender as minorias ou grupos oprimidos: negros, mulheres, pobres, pessoas do 3º mundo.

É preciso observar que existe uma tolerância exigida do cristão. Devemos tolerar as pessoas, mas não suas crenças, quando estas contrariam a verdade de Deus revelada nas Escrituras. Temos o dever de ouvir o que elas têm a dizer, e aprender delas naquilo em que se conformam com a verdade bíblica. Porém, tolerância ao erro, quando a verdade bíblica está em jogo, é omissão pecaminosa.

A tolerância tão característica da pós-modernidade pode afetar a interpretação da Bíblia levando as pessoas a interpretá-la a partir do conceito de “politicamente correto.” Evita-se qualquer leitura, interpretação ou posicionamento que venha a ser ofensivo à sociedade ou comunidade a que se ministra. Textos bíblicos que denunciam claramente determinados comportamentos morais, como o homossexualismo, são domesticados com uma leitura crítica que os reduz a expressões retrógradas típicas dos machistas do século I. Textos que anunciam a Cristo como o único caminho para Deus são interpre-tados de tal forma a não excluir a salvação em outras religiões.

Um outro aspecto da pós-modernidade que afeta a leitura da Bíblia é o inclusivismo. Num certo sentido, é o resultado do multiculturalismo do mundo pós-moderno. Não há mais no mundo ocidental um país com uma cultura única e uma raça homogênea. Países ocidentais são multiculturais e tem uma mescla de diversas raças. Para que não se seja ofensivo, e para que se possa conviver harmoniosamente, é necessário ser inclusivista. Isso significa dar vez e voz a todas as culturas e raças representadas.

Na sociedade pós-moderna, o conceito se estende para incluir os grupos moralmente orientados. Significa especialmente repartir o poder com as minorias anteriormente oprimidas pelas estruturas de poder, como negros, “gays”, mulheres, e raças minoritárias.

Existem coisas boas do inclusivismo multiculturalista, como por exemplo, estudos nos meios acadêmicos sobre a cultura de raças minoritárias e oprimidas no ocidente, como africanos, hispânicos e orientais. Também a criação de bolsas de estudos e empregos para membros destas minorias raciais, bem como de grupos oprimidos, como as mulheres. Ainda digno de nota é a luta contra discriminação baseada tão somente em raça, religião, postura política e gênero.

Mas existem coisas que nos preocupam no inclusivismo. A maior de todas é que o inclusivismo exclui qualquer juízo de valor em termos morais, religiosos, e de justiça. Tem que ser assim para que o relacionamento multicultural e multi-moral funcione.

O inclusivismo acaba também influenciando na interpretação bíblica. Sua mensagem é abordada do ponto de vista do programa das minorias. Por exemplo, a chamada “teologia negra,” a teologia da libertação, teologias feministas. Outra coisa é a tendência cada vez mais forte de se publicarem traduções da Bíblia sem linguagem genérica ofensiva, isto é, tirando todas as referências a Deus como sendo homem etc.

Um terceiro aspecto da pós-modernidade que influencia a leitura da Bíblia hoje é o relativismo. O relativismo, no que tange ao campo dos valores e dos conceitos morais e religiosos, é a ideia de que todos os valores morais e as crenças religiosas são igualmente válidos e que não se pode julgar entre eles. A verdade depende das lentes que alguém usa para ler a vida. O importante é que as pessoas tenham crenças, e não provar que uma delas é certa e a outra errada. Não há meio de se arbitrar sobre a verdade porque não há parâmetros absolutos. Desta forma, alguém pode crer em coisas mutuamente excludentes sem qualquer inconsistência. Ninguém pode tentar mudar a opinião de outrem em questões morais e religiosas.

Existem alguns perigos no relativismo quanto à leitura da Bíblia. Primeiro, o relativismo acaba por minar a credibilidade em qualquer forma de interpretação que se proponha como a correta. Segundo, acaba por individualizar a verdade. Cada pessoa tem sua verdade e ninguém pode alegar que a sua é superior a dos outros. Portanto, ninguém pode ter a pretensão de converter outros à sua fé.

Muitos evangelistas tentam suavizar a sua interpretação da mensagem do Evangelho, excluindo os elementos que não são “politicamente corretos” como: pecado, culpa, condenação, ira de Deus, arrependimento, mudança de vida. Acaba sendo uma tentação de escapar pela forma mais fácil do dilema entre falar todo o conselho de Deus ou ofender as pessoas.

Esses são alguns dos perigos que a pós-modernidade traz à leitura e interpretação das Escrituras. Reconhecemos a contribuição da pós-modernidade em destacar a participação do contexto e do leitor na produção de significado, quando se lê um texto. Porém, discordamos que isso invalide a possibilidade de uma leitura das Escrituras que nos permita alcançar a mensagem de Deus para nós e de ouvir a voz de Cristo, como Ele gostaria que ouvíssemos.