Em Pleno Nordeste Tropical Ouviu-Se “Castelo Forte” de Lutero – Tiago Cavaco

 

A noite anterior, na Igreja Batista de Parquelândia, tinha sido uma grande experiência. Coloquem-se no meu lugar: estou no Brasil para lançar três livros. Mas, como é óbvio, para a esmagadora maioria, sou um ilustre desconhecido. É verdade que a conferência em que estava inserida a minha palestra contava com o Franklin Ferreira no terceiro e último dia, facto que atraía muita gente. Ainda assim, quem se dispõe a ouvir um portuga anónimo? Foi aí que, uma vez mais, me apercebi que as minhas categorias portuguesas não faziam sentido no contexto brasileiro.

A Igreja Batista de Parquelândia rapidamente se encheu, com talvez três centenas ou mais de pessoas dentro do salão, mais um grupo de mais de cem pessoas a assistir num pátio externo, por uma tela instalada para o evento. Assim, em traços gerais, eu falava para quase meio milhar de pessoas, sendo que a maior parte eram jovens. Tal e qual: segunda-feira à noite, perto de meio milhar de jovens ouvir um pastor português desconhecido falar sobre meio milénio de um evento no Velho Continente. Se isto dá para se reproduzir na própria Europa? Dificilmente.

Esta coisa fantástica só pôde acontecer comigo porque há um país chamado Brasil onde se vivem coisas impensáveis no meu. Durante décadas o Brasil foi campo missionário norte-americano e, no contexto reformado no geral e presbiteriano em particular, houve um investimento em receber alunos brasileiros em boas universidades evangélicas americanas. Adicione-se a isto o inesperado vigor da vaga calvinista dos últimos dez anos e podemos encontrar um quadro que, sendo inesperado, está relacionado com boas práticas de um passado recente. Para que haja casas cheias e sedentas de ouvir falar sobre eventos europeus com meio milénio, que nem à Europa interessam, foi feito muito esforço norte e sul-americano.

Agora imaginem o momento em que, antes da palestra começar, se levanta o coral da Igreja Batista de Parquelândia e canta em plenos pulmões o “Castelo Forte” do Lutero. As minhas pequenas categorias europeias foram pelos ares. Quem no mundo está a valorizar a herança religiosa germânica são pequenas multidões de latino-americanos. Já pensaram nisto? A Europa bem pode deitar para o lixo o melhor do seu passado que haverá quem no hemisfério sul o aproveitará. Mais ainda: a Igreja Luterana alemã pode ser a anedota que é, que consiste basicamente em não acreditar em nada daquilo em que Lutero acreditava, que não há problema: we will always have Fortaleza! A Europa bem pode apodrecer em versões maricas e pós-modernas daquilo que foi uma revolução chamada Reforma Protestante, que a América Latina, bem acompanhada por África e Ásia, ainda agora se juntaram à festa.

Lutero está morto e enterrado na Alemanha, mas eu o vi bem vivo nas gargantas daqueles nordestinos. Fiz um esforço para não chorar porque tinha de falar àquela multidão logo em seguida.

O tema da palestra era “Ser Católico Sem Ser Romano – como a Reforma Protestante não nos tira da Igreja Universal”[1]. Levava receios de que o assunto pudesse ser demasiado denso para as preferências que associava a um poiso turístico. Uma vez mais, a minha ignorância confirmava-se. Quando acabo de falar havia espaço para perguntas colocadas pela assistência. A primeira não podia ser mais surpreendente. Um jovem, aí na casa dos vinte anos, queria saber a minha opinião acerca de casos como o do Scott Hahn.

Scott Hahn? Estão a fazer-me uma pergunta sobre o Scott Hahn no solarengo nordeste brasileiro? Na minha geografia intelectual um caso sobre o Scott Hahn dificilmente chegaria ao interesse do nordeste brasileiro, quanto mais ao seu conhecimento. E para aqueles que não conhecem o Scott Hahn, eu dou uma ajuda. O Scott Hahn foi um pastor presbiteriano que há umas décadas se tornou católico romano. Escreveu um livro a contar essa improvável conversão que se chama “Rome, Sweet Home” (a versão portuguesa chama-se “Todos Os Caminhos Vão Dar A Roma”[2]) e desde então tornou-se uma das vozes mais destacadas a defender sobretudo entre os protestantes norte-americanos a necessidade da conversão ao catolicismo. Além do caso do Scott Hahn, aconteceu na década passada também o do Francis Beckwith, que era o presidente da Evangelical Theological Society, entre outros possíveis de mencionar.

Como sou abençoado por ter amigos que são bons católicos romanos, sendo um deles o Filipe Costa Almeida, há uns anos recebi dele como presente este livro do Scott Hahn. Ou seja, quando a pergunta nordestina chegou inesperadamente, eu estava protegido pelo facto de ter lido o livro. E, portanto, tinha algo para dizer sobre o assunto. Não correu mal. Mas toda a minha presunção de achar que o nordeste brasileiro não estaria interessado no assunto “Ser Católico Sem Ser Romano” tornou-se mais uma a ser arrasada. O nordeste brasileiro não só está interessado no assunto como já está dentro dele. Se alguém estiver atrasado, será o lugar de onde vim – a Europa.

Nunca em Portugal conheci outro evangélico que tivesse por dentro da história do Scott Hahn. Nesse sentido, os evangélicos portugueses têm décadas de atraso em relação ao nordeste brasileiro. Teológica e culturalmente falando, Portugal tem muita sopa para comer para poder estar ao nível que encontrei em Fortaleza.

Por exemplo, a Igreja Batista de Parquelândia, que me recebeu para esta série de conferências, tinha a sua própria escola teológica, chamada Charles Spurgeon (os brasileiros pronunciam “espurgeon”, o que não deixa de ser engraçado).

O que isto quer dizer é que não somente o Brasil tem igrejas em cidades, além da capital, que estão vivas em iniciativas próprias que oferecem conhecimento bíblico profundo, como começam a oferecer um circuito crescente em que um teólogo, vindo de fora, pode ser recebido, ouvido, compreendido e colocado em causa pela via do diálogo.

Muitas das vozes teológicas no contexto reformado… têm passado por Fortaleza. Há muitos lugares do mundo onde isto está a acontecer? Duvido.

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Notas:

[1] A palestra pode ser encontrada completa no canal do YouTube da editora Vida Nova: CAVACO, Tiago. Ser Católico sem ser Romano. 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BCSd6dhXfrQ. Acesso em: 11 maio 2023. (N.E.)

[2] Edição brasileira: HAHN, Scott. Todos os Caminhos Levam a Roma. Lorena: Cleofás, 2015. (N.E.)

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Original: Em Pleno Nordeste Tropical Ouviu-Se “Castelo Forte” de Lutero, por Tiago Cavaco. Edições adicionais: Hélio Sales.